Ver e Poder, de Jean-Louis Comolli

ver e poder - comolli

Estou na metade do livro, mas desde já recomendo Ver e Poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário, do cineasta e teórico francês Jean-Louis Comolli. Tinha lido alguns textos do autor e referências a ele quando escrevi o meu trabalho de conclusão de curso, que tratou dos documentários Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991) e Kilmayr (Marcio Schenatto, 2006) – os quais, eu descubro agora, estão disponíveis no YouTube: aqui (Esta…) e aqui (Kilmayr).

Lançado em 2008, Ver e Poder faz parte da coleção Humanitas, da Editora UFMG. Os artigos foram selecionados e organizados pelos professores da UFMG César Guimarães e Ruben Caixeta (o primeiro também é um dos organizadores de outras duas obras que me agradaram muito, sugeridas pela Maya: Comunicação e experiência estética, de 2006, e O comum e a experiência da linguagem, de 2007). Difícil sintetizar o livro. O título já sinaliza a abrangência temática da compilação, que reúne artigos escritos para diversas publicações e manifestações de Comolli em debates. No geral, são reflexões em torno do documentário, que se ampliam num plano mais filosófico para discutir o olhar, o real no cinema e a condição dos personagens do documentário. O autor aborda a complexidade de cada questão de forma muito clara e, com freqüência, poética.

O trecho abaixo integra A parte da sombra, publicado originalmente em Dictionnaire des utopies (Larousse, 2002):

O cinema desloca o visível no tempo e no espaço. Ele esconde e subtrai mais do que ‘mostra’. A conservação da parte de sombra é sua condição inicial. Sua ontologia está relacionada à noite e ao escuro de que toda imagem tem necessidade para se constituir. Por tudo o que a escrita cinematográfica mobiliza de mais exigente (notadamente pelo fora-de-campo e a montagem), a vida ou a sobrevida das sombras nos aparece como uma das maiores apostas de hoje: são a própria marca daquilo que resiste a se deixar reduzir aos programas e às narrativas autorizadas. Algo de sombra perfura o visível e o desfaz. Essa sombra, paradoxalmente, se refugiou no cinema – o mesmo cinema que modelou nossas sociedades e as levou a uma visibilidade exacerbada. A máquina cinematográfica produz sombra tanto quanto luz, fora-de-campo tanto quanto campo. Talvez por ser máquina? Por que uma parte de impensado e de incontrolado subsiste nela e em nós? Se as máquinas são elas mesmas apenas parcelas do mundo, elas só podem confessar, sem denegação possível, que não o têm por inteiro em seu poder. Qualquer máquina é limite e nos impõe a consciência desse limite. Há um ponto cego da máquina de ver. Filmar se organizou historicamente como algo que gira em torno desse ponto cego. Contra as falsas certezas e as falsas inocências do visível, contra a própria ‘naturalidade’ do visível, ver, no cinema, é começar por não ver, aceitar não ‘ver tudo’, não ‘tudo de uma vez’, não ‘tudo ao mesmo tempo’; ver segundo uma organização temporal e espacial, uma decupagem, um corte e uma montagem do mundo.

Esquecemos o que mais sabemos: que o quadro é antes de tudo uma máscara e o fora-de-campo mais potente que o campo. É tudo isso que o cinema convoca ainda hoje: o não visível como o que acompanha, margeia e penetra o visível; o visível como fragmento ou narrativa ou leitura do não visível do mundo – e, como tal, historicamente determinado e politicamente responsável; o visível como episódio de uma história que ainda está por ser contada; o visível como lugar do engodo renovado quando quero acreditar que verdadeiramente vejo. No cinema, qualquer escopofilia encontra seus limites e sua crítica, o que a restringe e a coloca em crise. A parte da sombra se torna o desafio e o agente da representação: abrir para o espectador a possibilidade de perceber e talvez de entender o que não se deixa facilmente ver, o que escapa ao concreto da representação, o que não se pode ou não se quer mostrar, o que fascina o olho maquínico (…); mas também confrontar o espectador com os próprios limites do poder de ver, do ver como poder: fazê-lo perceber como, desde sempre, olhar e poder estão ligados, e que esse lugar do dono do olhar é também, claro, o da cegueira mais perfeita.

5 Respostas to “Ver e Poder, de Jean-Louis Comolli”


  1. 1 Priscilla quinta-feira, 30 abril 2009 às 6:38 am

    Já havia espiado antes, mas esquecido de dar um alô.
    Oi!
    Tenho gostado dos comentários, lindo o trecho último, e fiquei ainda mais curiosa com a Miranda July.
    bjs

  2. 2 Luísa sábado, 2 maio 2009 às 7:31 pm

    o “comunicação e experiência estética” está aqui em cima da pilha das pendências para os próximos itens da mono. já coloquei uns singelos post-its:

    imagens de imagens. imagens do dever ser, do parecer ser, do como será. imagens que modelam a exterioridade de nossos corpos e que caminham suavemente pela internalidade de nossas veias.

  3. 3 Cris quinta-feira, 11 junho 2009 às 8:00 am

    Fiquei com vontade de ler. Adorei os trechos. É definitivamente o tipo de indicação que eu adoro receber. Sei que não poderei ler agora. A monografia me chama, mas anotei o nome e o autor. Fica a vontade para daqui a alguns meses :)

  4. 4 Leonardo Gomes sexta-feira, 3 abril 2015 às 5:52 am

    Por favor, digitaliza esse livro e me envia uma cópia. Não consigo encontrá-lo em lugar algum. Preciso muito desse livro.

    leonardogomesoficial@bol.com.br

  5. 5 Pedro Tavares sexta-feira, 5 fevereiro 2016 às 7:01 am

    Eu também estou à procura de uma cópia do livro. Existe já uma versão em PDF que possa ser compartilhada? Se sim, pedia que me a enviassem.

    Obrigado

    (pfmmtavares@gmail.com)


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