Arquivo para abril \30\-04:00 2009

Ver e Poder, de Jean-Louis Comolli

ver e poder - comolli

Estou na metade do livro, mas desde já recomendo Ver e Poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário, do cineasta e teórico francês Jean-Louis Comolli. Tinha lido alguns textos do autor e referências a ele quando escrevi o meu trabalho de conclusão de curso, que tratou dos documentários Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991) e Kilmayr (Marcio Schenatto, 2006) – os quais, eu descubro agora, estão disponíveis no YouTube: aqui (Esta…) e aqui (Kilmayr).

Lançado em 2008, Ver e Poder faz parte da coleção Humanitas, da Editora UFMG. Os artigos foram selecionados e organizados pelos professores da UFMG César Guimarães e Ruben Caixeta (o primeiro também é um dos organizadores de outras duas obras que me agradaram muito, sugeridas pela Maya: Comunicação e experiência estética, de 2006, e O comum e a experiência da linguagem, de 2007). Difícil sintetizar o livro. O título já sinaliza a abrangência temática da compilação, que reúne artigos escritos para diversas publicações e manifestações de Comolli em debates. No geral, são reflexões em torno do documentário, que se ampliam num plano mais filosófico para discutir o olhar, o real no cinema e a condição dos personagens do documentário. O autor aborda a complexidade de cada questão de forma muito clara e, com freqüência, poética.

O trecho abaixo integra A parte da sombra, publicado originalmente em Dictionnaire des utopies (Larousse, 2002):

O cinema desloca o visível no tempo e no espaço. Ele esconde e subtrai mais do que ‘mostra’. A conservação da parte de sombra é sua condição inicial. Sua ontologia está relacionada à noite e ao escuro de que toda imagem tem necessidade para se constituir. Por tudo o que a escrita cinematográfica mobiliza de mais exigente (notadamente pelo fora-de-campo e a montagem), a vida ou a sobrevida das sombras nos aparece como uma das maiores apostas de hoje: são a própria marca daquilo que resiste a se deixar reduzir aos programas e às narrativas autorizadas. Algo de sombra perfura o visível e o desfaz. Essa sombra, paradoxalmente, se refugiou no cinema – o mesmo cinema que modelou nossas sociedades e as levou a uma visibilidade exacerbada. A máquina cinematográfica produz sombra tanto quanto luz, fora-de-campo tanto quanto campo. Talvez por ser máquina? Por que uma parte de impensado e de incontrolado subsiste nela e em nós? Se as máquinas são elas mesmas apenas parcelas do mundo, elas só podem confessar, sem denegação possível, que não o têm por inteiro em seu poder. Qualquer máquina é limite e nos impõe a consciência desse limite. Há um ponto cego da máquina de ver. Filmar se organizou historicamente como algo que gira em torno desse ponto cego. Contra as falsas certezas e as falsas inocências do visível, contra a própria ‘naturalidade’ do visível, ver, no cinema, é começar por não ver, aceitar não ‘ver tudo’, não ‘tudo de uma vez’, não ‘tudo ao mesmo tempo’; ver segundo uma organização temporal e espacial, uma decupagem, um corte e uma montagem do mundo.

Esquecemos o que mais sabemos: que o quadro é antes de tudo uma máscara e o fora-de-campo mais potente que o campo. É tudo isso que o cinema convoca ainda hoje: o não visível como o que acompanha, margeia e penetra o visível; o visível como fragmento ou narrativa ou leitura do não visível do mundo – e, como tal, historicamente determinado e politicamente responsável; o visível como episódio de uma história que ainda está por ser contada; o visível como lugar do engodo renovado quando quero acreditar que verdadeiramente vejo. No cinema, qualquer escopofilia encontra seus limites e sua crítica, o que a restringe e a coloca em crise. A parte da sombra se torna o desafio e o agente da representação: abrir para o espectador a possibilidade de perceber e talvez de entender o que não se deixa facilmente ver, o que escapa ao concreto da representação, o que não se pode ou não se quer mostrar, o que fascina o olho maquínico (…); mas também confrontar o espectador com os próprios limites do poder de ver, do ver como poder: fazê-lo perceber como, desde sempre, olhar e poder estão ligados, e que esse lugar do dono do olhar é também, claro, o da cegueira mais perfeita.

Descongelou

Diversa da dos trens
é a viagem que fazem os rios:
convivem com as coisas
entre as quais vão fluindo;
demoram nos remansos
para descansar e dormir;
convivem com a gente
sem se apressar em fugir.

O Rio, João Cabral de Melo Neto 

Porque agora o Meno fica assim aos domingos:

menoprimavera

Descongelou.

menocongel

Schwarzfahrer

Fui apresentado ao curta numa aula de alemão. “Schwarzfahrer” é o nome dado a quem utiliza o transporte público na Alemanha sem pagar a passagem. O título faz um trocadilho em relação ao personagem negro (schwarz), obrigado a escutar os comentários xenofóbicos de uma senhora num bonde de Berlim. Em 1993, o filme ganhou o Oscar de Melhor Curta-Metragem.

Miranda July

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Um carro passou lá fora e observamos blocos de luz deslizarem pelo teto. Carl pressionou meu pé para baixo e eu empurrei o dele para cima. Isso é uma coisa que fizemos na primeira vez que dormimos juntos, é um gesto com sete anos de idade. Nós na verdade nunca tivemos um namoro decente; nós nos conhecemos numa festinha na qual logo descobrimos que estávamos os dois nos recuperando de uma separação. Quando paramos de falar sobre nossos ex, já estavamos juntos havia um ano. Empurrei o pé de Carl para cima e ele pressionou o meu para baixo. Se o gesto fosse uma pessoa, estaria agora no ensino médio. Mas são só alguns movimentos. Mesmo assim, eu me sinto mais perto dele quando fazemos isso do que em qualquer outro momento. É como se nossos pés tivessem uma relação perfeita, honesta e amorosa, mas, dos tornozelos pra cima, estamos perdidos. Empurro de novo, mas ele não pressiona de volta; ele está dormindo.

Esse é um trecho do conto Mon Plaisir, do livro É claro que você sabe do que estou falando (no original No one belongs here more than you), escrito pela Miranda July. Assim como em Eu, Você e Todos Nós, um olhar para vidas comuns, encontros, fantasias e intimidades. Menos melancólico que o filme e também mais bem humorado. Tenho alguns contos favoritos, mas as 16 histórias mantêm uma regularidade, não foi preciso pular nenhuma. Aqui é possível ler na íntegra um outro conto, O garoto do Lam Kien, e atestar se os elogios fazem sentido.

Primavera

Já estamos de volta à Alemanha depois das semanas em Porto Alegre e dos últimos dias em São Paulo. A diferença dos fusos horários agora e durante os próximos meses é de 5 horas. Com a primavera as árvores voltam a ser verdes. Impressionante como o inverno por aqui faz com que isso se torne surpreendente. Meu olfato nunca foi dos melhores, mas desde o desembarque tenho reparado nos cheiros da nova estação – bem verdade que as lembranças do ar (?) de São Paulo devem favorecer o encantamento com a primavera.

Ontem eu e a Lenara andamos à beira do Meno e encontramos praticamente (tá, com algum exagero) todos os nossos conhecidos de Frankfurt, pelo menos aqueles que não aproveitaram a Páscoa para viajar – aqui, a propósito, segunda-feira também será feriado.

Agora fiquei com uma impressão mais palpável de como mudam os humores na Europa quando as temperaturas se elevam e quando – aí falando especialmente da Alemanha – o céu deixa de ser cinza 6 dias por semana. Mesmo quem tem um bom crédito de céu azul e sol na cabeça começa a dar outro valor para as estações mais ensolaradas.

Sobre O Bairro

Só para não deixar o post anterior perdido: gostei bastante da montagem de O Bairro, que segue em cartaz até domingo (12.04), em Porto Alegre. Tudo muito simples, como aliás são os livros dessa série. Fiquei curioso por O Senhor Calvino, que ainda não li e que propiciou as interpretações da peça que mais me marcaram. É um empurrão para ler e reler as reflexões do bairro imaginado pelo Gonçalo Tavares.


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